3.6.19

Quando Dizemos “Deus”...


A Bíblia é um “clássico” da humanidade. Na verdade, como qualquer obra clássica, surge de um povo e de contextos histórico-sociais bem determinados, mas tem a capacidade de alcançar raízes profundas do fenômeno humano e, assim, se faz contemporânea de todas as gerações, por revelar estruturas constitutivas da íntima realidade antropológica e da convivência humana. Explicita continuamente algo permanente acerca dos conflitos internos das pessoas, das relações entre elas e das estruturas de convivência. O que subjaz a tudo isso é o conflito profundo entre Liberdade e Opressão, em outras palavras, entre Amor, dimensão constitutiva da Pessoa, e Exclusão, que fecha a pessoa em sua condição de indivíduo. De fato, na raiz desse conflito, está a experiência do Poder, experiência radical (de raiz), o “locus” onde se toca Deus na vida humana, o “ponto Deus” em nós.

A Bíblia aborda o tema mediante alguns símbolos muito expressivos. Primeiro, a convicção de que Deus é invisível. Daí, decorrem os mandamentos de adorar um único Deus, não fazer imagens da divindade, não instrumentalizar Seu Nome, como se faz com os ídolos “vãos” e celebrar o Dia do Descanso como dia da libertação do cativeiro e dia da liberdade humana sobre as próprias obras (cf. Dt 5, 6-15; Ex 20, 3-11; Ex 32, 1-6). O Deus invisível já se manifesta desde a Criação na imagem por Ele mesmo estabelecida, o homem e a mulher (cf. Gn 1, 26), as duas expressões complementares do mesmo ser humano, a saber, o ser feito do húmus, da argila da terra, Adam é o ser Terrestre e é plural (cf. Gn 1, 27). Intimamente vinculado à Terra, a ponto de ser considerado o masculino (Adam) em íntima comunhão com todos os seres terrestres que compõem o elemento feminino, ou seja, Adamah (cf. Gn 1, 28-31); do mesmo modo como se dá  num casamento entre o homem enquanto marido (“ix”) e a mulher (“ixah”), ambos sendo o mesmo em sua forma masculina e feminina (cf. Gn 2, 23). “Adam” expressa o parentesco com o húmus da terra, a qual deve, amorosamente, ”cultivar e guardar” (cf. Gn 2, 7-15); “Hayah” (Eva) é a fonte e expressão da Vida, aquela que pode pôr-se “frente a frente” diante de Adam, “carne de sua carne e ossos de seus ossos” (cf. Gn 2, 18-25). Portanto, excluem-se a pluralidade de deuses e a necessidade de imagens, pois no homem e na mulher os traços divinos já estão indelevelmente impressos, aí é que Deus Se revela.

Outro símbolo significativo é a impossibilidade de ver a face de Deus. Nem Moisés pode vê-Lo (cf. Ex 33, 18-23), mesmo que se chegue a dizer que com ele Deus conversa como com um amigo (cf. Ex 33, 11). O mesmo se dá com Elias, o grande profeta, defensor da honra de Deus (cf. 1Rs 19, 13). Mesmo assim, Moisés, o grande libertador, enviado para assumir o papel da liderança divina em favor do povo, sente necessidade de conhecer Seu Nome, a saber, “apoderar-se” da identidade divina para invocá-La e poder contar com Ela na quase impossível empresa para a qual se sente convocado. Mas Deus não cede a suas pretensões, simplesmente lhe diz “Eu Sou o que Sou”. O mesmo que dizer: “Eu Estou como Estou”, ou “Eu estarei aí”, presente, “Eu estarei contigo” (cf. Ex 3, 11-15). Tudo isso significa que a presença divina se revela na experiência humana histórica da liberdade (cf. Ex 32, 1): o Mistério transcendente será objeto de experiência, não diretamente de “conhecimento”, será experimentado como experiência de salvação (vale a pena ler o livro de Isaías a partir do capítulo 40). O nome divino YHWH pode, na origem, estar ligado ao fenômeno da tempestade e do vento, o que aparece em certos textos bíblicos onde se fala de Deus como “Espírito”, sopro, vendaval, vento, brisa.... Isto sugere a experiência de manifestação quase sem forma física, sem poder ser apalpada nem mesmo vista, como se dá na visão a Elias (cf. 1Rs 19, 9-13). Revela-Se em nós e entre nós, como dimensão que provoca em nós uma maneira divina de ser. Em nós é que experimentamos Deus. Fora disso, caímos no campo do imaginário, imaginação que se pode degradar a “alienação”. A partir do século III, prevaleceu, no povo judeu, o costume de não pronunciar o Nome divino, uma maneira de guardar o Mistério nele contido.

Deus não se mostra em Si mesmo, a Bíblia é enfática em ressaltar que não Se deixa ver, Sua voz é que se escuta nas circunstâncias da vida, sim, a Vida fala, é Palavra que nos convoca a atuar em Seu Nome e a agir como Ele. Para isso é que nos envia, como vemos repetidamente nos episódios de vocação (cf. 1Rs 19; Is 6; Jr 1; Ez 1-3; Is 42; 49; 50; 52-53).

Em estranhos encontros com Moisés (cf. Ex 4, 24-26) e com  Jacó (cf. Gn 32, 23-32), dá-se algo muito sugestivo, o que se vê também nas histórias de Abraão e de Ló. É clara a ameaça à vida, e a salvação corresponde a passar para nova compreensão do caminho do viver, algo como depois Paulo vai interpretar o batismo, processo de iniciação à fé, de morte e ressurreição com Cristo (cf. Rm 6) e João vai falar do amor como a decisiva “passagem da morte para a vida”. Em última análise, trata-se de passar a nova compreensão do Caminhar com Deus, caminho perigoso, análogo a “passar da morte para a vida”, como confessam (e até se queixam) os profetas, particularmente Jeremias. A grande reviravolta que transformou a vida de Saulo de Tarso se caracteriza justamente como evento de morte: ser derrubado no caminho, tornar-se cego e mergulhar na escuridão como efeito de insuportável claridade. Era preciso que chegasse a perceber a presença do Messias de Deus na face das pessoas que desprezava e perseguia como inimigas mortais (“Por que Me persegues?”). E ainda se acrescenta que é justamente dessas pessoas que lhe vem o auxílio para “recuperar a visão”, deixando que “escamas lhe caiam dos olhos” (cf. At 9).     

A corrente joanina reflete profundamente sobre este tema. Ao contemplarem em Jesus uma nova e surpreendente humanidade, os discípulos espontaneamente Lhe pedem: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta”. A resposta de Jesus é imediata: “Há tanto tempo estou convosco e tu não me conheces? Quem me vê, vê o Pai. Como podes dizer: “Mostra-nos o Pai!”? Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim?” (Jo 14, 8-10). Imediatamente antes, Jesus é apresentado a dizer: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim. Se me conheceis também conhecereis meu Pai. Desde agora O conheceis e O vistes” (Jo 14, 6-7). Ou seja, é pela humanidade de Jesus que Deus manifesta a Si mesmo: “Ninguém jamais viu a Deus, o Filho unigênito que está no seio do Pai, este O deu a conhecer” (Jo 1, 18; 1Jo 4, 12). Na Primeira Carta, atribuída a São João, aprofunda-se e concretiza-se ainda mais o tema: “Nisto são reconhecíveis os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele que não ama o seu irmão” (3, 10). “Não vos admireis, irmãos, se o mundo vos odeia. Nós sabemos bem que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos” (3, 13-14). E a mesma reflexão pervade todo o capítulo. E chegamos ao ponto alto quando se afirma: “Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece (por experiência) a Deus, porque Deus é amor”. E é sintomático que se dê como exemplo do amor aquilo que para nós se situa no campo da “Economia”, a questão da posse de bens: “Se alguém possuindo os bens deste mundo, vê seu irmão na necessidade e lhe fecha as entranhas (coração), como permanecerá nele o amor de Deus?” (17). Deus está em nós mediante Seu Espírito que nos torna semelhantes a Ele (cf. 4, 3-6; Mt 5, 48: “Portanto, deveis ser perfeitos(as) como vosso Pai celeste é perfeito). Outro ponto culminante do texto é: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso, pois quem não ama o seu irmão a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (4, 20). Tudo isto porque “ninguém jamais contemplou a Deus; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o Seu amor em nós é realizado” (4, 12).

Dizia-se acima que o “ponto Deus” em nós se dá na experiência do poder. O que é o poder? O poder não é simplesmente algo que temos, como se fosse uma determinada qualidade entre outras. Na verdade, o poder somos nós enquanto seres possíveis, de possibilidades, de potência, de potestade, de posse... em outras palavras, poder é nossa capacidade de ser, que se concretiza nas capacidades que nos formam e nos possibilitam agir para afirmar a nós mesmos(as) e tomar posse do mundo, ou seja, cada qual de nós busca tomar nas próprias mãos a existência para afirmar-se como “ser em si”, possuir-se a si mesmo(a), não permitindo que outros(as) nos possuam em função de si, o que seria reduzir-nos a coisas.  Essa experiência, de “ser capaz” ou possível, nos projeta por sobre a realidade da vida e do mundo e, assim, nos sentimos como “centro” em torno do qual a totalidade parece girar. Ora, não demoramos a perceber que todos os seres humanos têm a mesma experiência. Quer dizer, há uma infinidade de centros e cada qual de nós tem de achar o seu lugar, nunca absoluto, sempre relativo e precário. Essa experiência, de fato, pode tomar duas direções opostas: ou a afirmação de si para si (fechamento) ou abrir-se à grandiosa totalidade dos seres da Natureza, à universalidade das Pessoas e ao horizonte do Futuro.

Ao fechar-se para si mesmo, o ser humano, longe de alcançar plenitude,  de fato, comporta-se como criança temerosa que se apossa do brinquedo (da vida) e recusa-se a compartilhá-lo, submete-se às ilusões que brotam dos próprios sonhos e caprichos infantis e reduz seu horizonte de vida a “obedecer” a pulsões imediatas e mesquinhas que tendem a isolá-lo (tornar-se “isola”, ilha) da realidade maior que o cerca e que é o verdadeiro caminho para ter a chance de libertar-se. Na verdade, isso se explica pelo medo de ser roubado de si, pela insegurança quanto ao próprio lugar no mundo, sintoma de imaturidade. Se, ao contrário, se abre à totalidade, a afirmação de si se dá ao ir além de si, ultrapassar-se, transcender-se. Não é outra coisa, senão o que chamamos de Liberdade, pois é por ela que nos projetamos sem medo para além de nós, dando-se, assim, a coincidência entre Amor (entrega) e Liberdade (poder, posse de si).

Em outras palavras, na experiência da Liberdade, Deus, a Transcendência, se manifesta entre nós e em nós, como dimensão libertadora e por isso humanizadora. Nossa imagem de Deus deve superar toda representação de um “ente” diante ou acima de nós, mas, como se diz em Atos dos Apóstolos: “N’Ele vivemos, nos movemos, e somos” (At 17, 28), como mergulhados(as) em imenso oceano. Não é fácil nem conatural, porém, seguir a direção indicada pelas Escrituras. Sempre tentamos dar um rosto a essa experiência e somos levados(as) a imaginar Deus como uma pessoa, já que a pessoa é o mais alto que se pode conceber, por ser “o que há de mais excelente em toda a ordem da Natureza”, como dizia Santo Tomás de Aquino. E ainda acrescenta dizendo o seguinte: o universo se explica mais facilmente se admitimos que Deus existe, que Ele é. Daí, elaborou as chamadas “vias” para chegar à probabilidade da existência de Deus. Aliás, em sintonia com isso, temos hoje a profunda admiração de famosos nomes da Física quando, ao observarem o conjunto da realidade, embora, aparentemente, os processos se deem por acaso, na verdade, porém, se encantam com a incrível racionalidade que parece presidir o ritmo da Natureza. Entretanto, dizia Santo Tomás, quanto ao que Deus é, a saber, como Ele é em Si mesmo, nada sabemos a não ser por experiência íntima.

Ora, vimos que as Escrituras excluem ceder a essa tentação de dar a Deus um rosto. Proíbem qualquer “imagem”, pois seria sempre idolatria, projeção de nosso próprio rosto (cf. Sb 13-15). A indicação que temos é de contemplar a Deus (o Mistério da Vida) nos traços do rosto de Jesus e nos pobres (cf. Mt 25, 31-46). Não é, porém, fácil e conatural seguir a direção indicada pela Bíblia. Mas, de fato, é a partir desse sólido fundamento na história e na vida, que se estabelece a Comunhão. Segundo Jesus, no serviço e no perdão recíprocos  e na partilha, como se vê nos diálogos que se dão na última subida a Jerusalém, quando só se trata do serviço (o verdadeiro poder exercido mediante a entrega das própria capacidades) e da partilha, poder exercido mediante a posse comum das coisas (cf. Mc 8, 22 – 10, 52). Logo no início do Caminho, há como que um resumo de tudo: “Quem quiser salvar (guardar para si) a própria vida, a perderá; mas quem perder (entregar) sua vida, por causa de mim e do Evangelho, a salvará. Com efeito, que aproveita a alguém ganhar o mundo inteiro e arruinar sua própria vida?” (Mc 8, 35-36). Dito que revela fina percepção do estrato mais profundo do psiquismo humano...

Se o “locus” da Revelação de Deus é o poder (a encruzilhada entre entrega de si ou dominação), isto significa que aí está também o “lugar” da comunhão. Na verdade, o poder real, autêntico, é o que está carregado de “autoridade”. Como dizia Margareth Tatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido: “O poder é como uma dama, se precisa dizer que é, já não é”. Não tem necessidade de impor-se, de afirmar-se de fora, pois poder equivale a potência de ser, isto é, capacidade e possibilidade de ser. Já foi lembrada a família do vocabulário do poder: potência, potestade, possível, possibilidade, posse... É ser “auctor”, capacidade de “fazer crescer” (verbo “augere”, em latim), possibilidade de ser mais. É ser construtor(a) de si mesmo(a) e edificador(a) de outras pessoas e do mundo em redor. É empoderar-se e empoderar; mediante as relações, ser capaz de transbordar capacidade de ser em torno de si, irradiar e promover poder: “Em verdade, em verdade, vos digo: quem crê em Mim fará as obras que faço e fará até maiores do que estas, porque vou para o Pai” ( Jo 14, 12).

Notemos que Jesus nunca diz: “Meu poder te curou”, mas “tua fé te salvou”. Assim, devolve à outra pessoa seu papel de sujeito, de “autor” da própria transformação. Ter necessidade de impor, ordenar, mandar, coagir é sempre sinal de fraqueza, imperfeição do poder, incapacidade de influenciar por dinamismo de irradiação criativa. É sinal de relação humana inconclusa, precária, frágil. É isto o que distingue o que é mero (e frágil) poder legal e o que é de fato poder real, o que se chama de capacidade/possibilidade de liderar, de atrair, de encantar, de chamar a seguir, como, por exemplo, se dá com Jesus que é capaz de convencer, por Sua autoridade moral, esta, sim, o verdadeiro poder: “Senhor, a quem iremos, só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 5, 68; cf. Jo 1, 35-39).

Jesus é antropologicamente radical quando ensina que quem é realmente primeiro não teme comportar-se como último, não hesita em servir e partilhar, ou seja, oferecer a vida (o que se é e o que se tem) em favor das demais pessoas (cf. Jo 10,10; Mc 8, 34-38; 9, 33-37; 10, 35-45); nisto é que se revela o autêntico poder, quando a pessoa chega a tal posse de si mesma que se oferece totalmente sem medo de perder-se. Na verdade, só se entrega quem se possui. Note-se que não estamos no nível de “preceito moral”, mas no nível antropológico, constitutivo do ser pessoa mediante a liberdade. “O sentido da vida são as outras pessoas”, proclamava o poeta Ferreira Goulart.

Conclusão: A idolatria e o Deus vivo. O ser humano é, por essência,  material, concreto, particular, “individual”. Essa condição se reflete na relação com realidades transcendentes, pois a tendência é imaginá-las à semelhança de algo palpável. Só podemos conceber realidades espirituais por abstração ou por analogia. O comportamento mais comum, porém, é “representá-las” imaginativamente como “algo” ou “alguém”, o que, evidentemente não é adequado. É nisso que está a raiz das imagens de Deus que construímos. Sempre projetamos nelas nossas experiências no mundo, necessariamente marcadas pela materialidade e a contingência. Temos de levar em conta esta nossa condição, mas é preciso esforçar-se por ir além dela.

Na verdade, pela “via projetiva” é impossível alcançar Deus, pois não é “efeito” ou “produto”, antes, “causa última” da realidade. Por isso, só se revela pela potência que difunde em todas as coisas, uma vez que todas as “causas segundas” d’Ele derivam por “participação” em Seu ser, como ensina Santo Tomás.

Esta é a razão mais profunda pela qual as Escrituras proíbem construir “imagens”. Deus não se revela como “algo” ou mesmo “alguém”. Nós o experimentamos como dimensão presente em nós e entre nós que nos arrasta para além de nós, e é imprescindível para nosso processo de humanização, como vimos na Primeira Carta de São João. Ou O assimilamos e nos tornamos semelhantes a Ele, ou nos fechamos num círculo diabólico que nos leva a matar e morrer (cf. 1Jo 2, 12-17; 3, 11-15).

Como vimos, a partir da altura de nossa condição de “pessoa”, imaginamos ou postulamos que Deus seja tido como realidade “pessoal”. A Bíblia aponta para Jesus e para os pobres, neles é que transparece Seu rosto, uma maneira concreta de dizer que Deus Se revela sempre mediante a realidade de Outro(a), mediação da transcendência, chamado a irmos além de nós, via obrigatória para o reconhecimento de nós mesmos(as), pois só Se revela em nós e entre nós. Assim, é mediante as relações entre nós que se nos revela Sua presença: “Deus é amor e quem ama conhece (por experiência) Deus”. Dom Helder Camara sempre dizia com plena convicção que nos pobres tocamos “o Cristo vivo”, passamos além dos símbolos e alcançamos o conteúdo da fé. O mesmo que percebemos hoje nos gestos e nas palavras desse outro grande homem que é o Papa Francisco. 

Esta não é simplesmente uma questão “religiosa”, é, na verdade, a questão axial da vida humana, a questão antropológica radical, a referência absoluta. Só é possível tornar-se humano(a) quando se está em Deus, independentemente de crença religiosa. Não se trata de “saber”, trata-se de “ser”. O Evangelho o declara quando diz que a “relação” é a medida do julgamento inapelável ( cf. Mt 25, 31-46). Justamente porque são as relações com o Universo, com as outras pessoas e com o Futuro que constituem nossa “pessoalidade”, nossa identidade. O Pobre é particularmente o Outro a ser “afirmado”. Daí seu privilégio enquanto imagem de Deus, já que o Outro é a concreta e imediata irrupção da Transcendência e, por isso, o apelo a cada pessoa a projetar-se para além de si mesma. O Deus vivo e verdadeiro não se revela como um “determinado” Deus  em oposição a “outros” deuses, que possa ser configurado com traços bem determinados, como se fosse mais excelso entre todos os outros “entes”, isto é, todos os outros seres. Ora, é Ele a causa última que perpassa e ultrapassa a totalidade dos seres, para aquém do Princípio e para além do Fim. A função clássica da chamada Teologia Negativa é justamente esta, derrubar todas as imagens que construímos de Deus, não para construir, em seu lugar, outra imagem que seria “verdadeira e autêntica”, não, trata-se de destruir todas as imagens (doutrinas, rituais, instituições religiosas...), pois todas elas estão sempre contaminadas pela projeção de nosso próprio rosto, fruto de nosso “desejo”. Em tudo o que imaginamos e dizemos de Deus há sempre o germe da idolatria, o vazio e a mentira dos ídolos, como já advertiam os profetas. “Deus é sempre maior” e só transparece mais plenamente no amor maior...                   



Dom Sebastião Armando Gameleira Soares
Bispo da Igreja Anglicana