A Bíblia é um “clássico” da
humanidade. Na verdade, como qualquer obra clássica, surge de um povo e de
contextos histórico-sociais bem determinados, mas tem a capacidade de alcançar
raízes profundas do fenômeno humano e, assim, se faz contemporânea de todas as
gerações, por revelar estruturas constitutivas da íntima realidade
antropológica e da convivência humana. Explicita continuamente algo permanente
acerca dos conflitos internos das pessoas, das relações entre elas e das
estruturas de convivência. O que subjaz a tudo isso é o conflito profundo entre
Liberdade e Opressão, em outras palavras, entre Amor, dimensão constitutiva da
Pessoa, e Exclusão, que fecha a pessoa em sua condição de indivíduo. De fato,
na raiz desse conflito, está a experiência do Poder, experiência radical (de
raiz), o “locus” onde se toca Deus na vida humana, o “ponto Deus” em nós.
A Bíblia aborda o tema
mediante alguns símbolos muito expressivos. Primeiro, a convicção de que Deus é
invisível. Daí, decorrem os mandamentos de adorar um único Deus, não fazer
imagens da divindade, não instrumentalizar Seu Nome, como se faz com os ídolos
“vãos” e celebrar o Dia do Descanso como dia da libertação do cativeiro e dia
da liberdade humana sobre as próprias obras (cf. Dt 5, 6-15; Ex 20, 3-11; Ex
32, 1-6). O Deus invisível já se manifesta desde a Criação na imagem por Ele
mesmo estabelecida, o homem e a mulher
(cf. Gn 1, 26), as duas expressões complementares do mesmo ser humano, a saber,
o ser feito do húmus, da argila da terra, Adam é o ser Terrestre e é plural
(cf. Gn 1, 27). Intimamente vinculado à Terra, a ponto de ser considerado o
masculino (Adam) em íntima comunhão com todos os seres terrestres que compõem o
elemento feminino, ou seja, Adamah (cf. Gn 1, 28-31); do mesmo modo como se
dá num casamento entre o homem enquanto
marido (“ix”) e a mulher (“ixah”), ambos sendo o mesmo em sua forma masculina e
feminina (cf. Gn 2, 23). “Adam” expressa o parentesco com o húmus da terra, a
qual deve, amorosamente, ”cultivar e guardar” (cf. Gn 2, 7-15); “Hayah” (Eva) é
a fonte e expressão da Vida, aquela que pode pôr-se “frente a frente” diante de
Adam, “carne de sua carne e ossos de seus ossos” (cf. Gn 2, 18-25). Portanto,
excluem-se a pluralidade de deuses e a necessidade de imagens, pois no homem e
na mulher os traços divinos já estão indelevelmente impressos, aí é que Deus Se
revela.
Outro símbolo significativo é
a impossibilidade de ver a face de Deus.
Nem Moisés pode vê-Lo (cf. Ex 33, 18-23), mesmo que se chegue a dizer que com
ele Deus conversa como com um amigo (cf. Ex 33, 11). O mesmo se dá com Elias, o
grande profeta, defensor da honra de Deus (cf. 1Rs 19, 13). Mesmo assim, Moisés,
o grande libertador, enviado para assumir o papel da liderança divina em favor
do povo, sente necessidade de conhecer Seu Nome, a saber, “apoderar-se” da
identidade divina para invocá-La e poder contar com Ela na quase impossível
empresa para a qual se sente convocado. Mas Deus não cede a suas pretensões,
simplesmente lhe diz “Eu Sou o que Sou”. O mesmo que dizer: “Eu Estou como
Estou”, ou “Eu estarei aí”, presente, “Eu estarei contigo” (cf. Ex 3, 11-15).
Tudo isso significa que a presença divina se revela na experiência humana
histórica da liberdade (cf. Ex 32, 1): o Mistério transcendente será objeto de
experiência, não diretamente de “conhecimento”, será experimentado como
experiência de salvação (vale a pena ler o livro de Isaías a partir do capítulo
40). O nome divino YHWH pode, na origem, estar ligado ao fenômeno da tempestade
e do vento, o que aparece em certos textos bíblicos onde se fala de Deus como
“Espírito”, sopro, vendaval, vento, brisa.... Isto sugere a experiência de
manifestação quase sem forma física, sem poder ser apalpada nem mesmo vista,
como se dá na visão a Elias (cf. 1Rs 19, 9-13). Revela-Se em nós e entre nós,
como dimensão que provoca em nós uma
maneira divina de ser. Em nós é que
experimentamos Deus. Fora disso, caímos no campo do imaginário, imaginação
que se pode degradar a “alienação”. A partir do século III, prevaleceu, no povo
judeu, o costume de não pronunciar o Nome divino, uma maneira de guardar o
Mistério nele contido.
Deus não se mostra em Si
mesmo, a Bíblia é enfática em ressaltar que não Se deixa ver, Sua voz é que se
escuta nas circunstâncias da vida, sim, a Vida fala, é Palavra que nos convoca
a atuar em Seu Nome e a agir como Ele. Para isso é que nos envia, como vemos
repetidamente nos episódios de vocação (cf. 1Rs 19; Is 6; Jr 1; Ez 1-3; Is 42;
49; 50; 52-53).
Em estranhos encontros com
Moisés (cf. Ex 4, 24-26) e com Jacó (cf.
Gn 32, 23-32), dá-se algo muito sugestivo, o que se vê também nas histórias de
Abraão e de Ló. É clara a ameaça à vida, e a salvação corresponde a passar para
nova compreensão do caminho do viver, algo como depois Paulo vai interpretar o
batismo, processo de iniciação à fé, de morte e ressurreição com Cristo (cf. Rm
6) e João vai falar do amor como a decisiva “passagem da morte para a vida”. Em
última análise, trata-se de passar a nova compreensão do Caminhar com Deus,
caminho perigoso, análogo a “passar da morte para a vida”, como confessam (e
até se queixam) os profetas, particularmente Jeremias. A grande reviravolta que
transformou a vida de Saulo de Tarso se caracteriza justamente como evento de
morte: ser derrubado no caminho, tornar-se cego e mergulhar na escuridão como
efeito de insuportável claridade. Era preciso que chegasse a perceber a
presença do Messias de Deus na face das pessoas que desprezava e perseguia como
inimigas mortais (“Por que Me persegues?”). E ainda se acrescenta que é
justamente dessas pessoas que lhe vem o auxílio para “recuperar a visão”,
deixando que “escamas lhe caiam dos olhos” (cf. At 9).
A corrente joanina reflete
profundamente sobre este tema. Ao contemplarem em Jesus uma nova e
surpreendente humanidade, os discípulos espontaneamente Lhe pedem: “Senhor,
mostra-nos o Pai e isso nos basta”. A resposta de Jesus é imediata: “Há tanto
tempo estou convosco e tu não me conheces? Quem me vê, vê o
Pai. Como podes dizer: “Mostra-nos o Pai!”? Não crês que estou no Pai e o Pai
está em mim?” (Jo 14, 8-10). Imediatamente antes, Jesus é apresentado a dizer:
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a
Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim. Se me conheceis também conhecereis
meu Pai. Desde agora O conheceis e O vistes” (Jo 14, 6-7). Ou seja, é pela
humanidade de Jesus que Deus manifesta a Si mesmo: “Ninguém jamais viu a Deus,
o Filho unigênito que está no seio do Pai, este O deu a conhecer” (Jo 1, 18;
1Jo 4, 12). Na Primeira Carta, atribuída a São João, aprofunda-se e
concretiza-se ainda mais o tema: “Nisto são reconhecíveis os filhos de Deus e
os filhos do diabo: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele
que não ama o seu irmão” (3, 10). “Não vos admireis, irmãos, se o mundo vos
odeia. Nós sabemos bem que passamos da morte para a vida porque amamos os
irmãos” (3, 13-14). E a mesma reflexão pervade todo o capítulo. E chegamos ao
ponto alto quando se afirma: “Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece (por
experiência) a Deus, porque Deus é amor”. E é sintomático que se dê como
exemplo do amor aquilo que para nós se situa no campo da “Economia”, a questão
da posse de bens: “Se alguém possuindo os bens deste mundo, vê seu irmão na
necessidade e lhe fecha as entranhas (coração), como permanecerá nele o amor de
Deus?” (17). Deus está em nós mediante Seu Espírito que nos torna semelhantes a Ele (cf. 4, 3-6; Mt 5, 48:
“Portanto, deveis ser perfeitos(as) como
vosso Pai celeste é perfeito). Outro ponto culminante do texto é: “Se
alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso, pois quem
não ama o seu irmão a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (4, 20).
Tudo isto porque “ninguém jamais contemplou a Deus; se nos amarmos uns aos
outros, Deus permanece em nós e o Seu
amor em nós é realizado” (4, 12).
Dizia-se acima que o “ponto
Deus” em nós se dá na experiência do poder. O que é o poder? O poder não é
simplesmente algo que temos, como se fosse uma determinada qualidade entre
outras. Na verdade, o poder somos nós enquanto seres possíveis, de
possibilidades, de potência, de potestade, de posse... em outras palavras,
poder é nossa capacidade de ser, que se concretiza nas capacidades que nos
formam e nos possibilitam agir para afirmar a nós mesmos(as) e tomar posse do
mundo, ou seja, cada qual de nós busca tomar nas próprias mãos a existência
para afirmar-se como “ser em si”, possuir-se a si mesmo(a), não permitindo que
outros(as) nos possuam em função de si, o que seria reduzir-nos a coisas. Essa experiência, de “ser capaz” ou possível,
nos projeta por sobre a realidade da vida e do mundo e, assim, nos sentimos
como “centro” em torno do qual a totalidade parece girar. Ora, não demoramos a
perceber que todos os seres humanos têm a mesma experiência. Quer dizer, há uma
infinidade de centros e cada qual de nós tem de achar o seu lugar, nunca
absoluto, sempre relativo e precário. Essa experiência, de fato, pode tomar
duas direções opostas: ou a afirmação de
si para si (fechamento) ou abrir-se
à grandiosa totalidade dos seres da Natureza, à universalidade das Pessoas e ao
horizonte do Futuro.
Ao fechar-se para si mesmo, o ser humano, longe de alcançar plenitude, de fato, comporta-se como criança temerosa que
se apossa do brinquedo (da vida) e recusa-se a compartilhá-lo, submete-se às
ilusões que brotam dos próprios sonhos e caprichos infantis e reduz seu
horizonte de vida a “obedecer” a pulsões imediatas e mesquinhas que tendem a
isolá-lo (tornar-se “isola”, ilha) da realidade maior que o cerca e que é o verdadeiro
caminho para ter a chance de libertar-se. Na verdade, isso se explica pelo medo
de ser roubado de si, pela insegurança quanto ao próprio lugar no mundo,
sintoma de imaturidade. Se, ao contrário, se abre à totalidade, a afirmação de si se dá ao ir além de si,
ultrapassar-se, transcender-se. Não é outra coisa, senão o que chamamos de
Liberdade, pois é por ela que nos projetamos sem medo para além de nós,
dando-se, assim, a coincidência entre Amor (entrega) e Liberdade (poder, posse
de si).
Em outras palavras, na
experiência da Liberdade, Deus, a Transcendência, se manifesta entre nós e em
nós, como dimensão libertadora e por isso humanizadora. Nossa imagem de Deus
deve superar toda representação de um “ente” diante ou acima de nós, mas, como
se diz em Atos dos Apóstolos: “N’Ele vivemos, nos movemos, e somos” (At 17, 28),
como mergulhados(as) em imenso oceano. Não é fácil nem conatural, porém, seguir
a direção indicada pelas Escrituras. Sempre tentamos dar um rosto a essa
experiência e somos levados(as) a imaginar Deus como uma pessoa, já que a
pessoa é o mais alto que se pode conceber, por ser “o que há de mais excelente
em toda a ordem da Natureza”, como dizia Santo Tomás de Aquino. E ainda
acrescenta dizendo o seguinte: o universo se explica mais facilmente se
admitimos que Deus existe, que Ele é. Daí, elaborou as chamadas “vias” para
chegar à probabilidade da existência de Deus. Aliás, em sintonia com isso,
temos hoje a profunda admiração de famosos nomes da Física quando, ao
observarem o conjunto da realidade, embora, aparentemente, os processos se deem
por acaso, na verdade, porém, se encantam com a incrível racionalidade que
parece presidir o ritmo da Natureza. Entretanto, dizia Santo Tomás, quanto ao que Deus é, a saber, como Ele
é em Si mesmo, nada sabemos a não ser por experiência íntima.
Ora, vimos que as Escrituras
excluem ceder a essa tentação de dar a Deus um rosto. Proíbem qualquer
“imagem”, pois seria sempre idolatria, projeção de nosso próprio rosto (cf. Sb
13-15). A indicação que temos é de contemplar a Deus (o Mistério da Vida) nos
traços do rosto de Jesus e nos pobres (cf. Mt 25, 31-46). Não é, porém, fácil e
conatural seguir a direção indicada pela Bíblia. Mas, de fato, é a partir desse
sólido fundamento na história e na vida, que se estabelece a Comunhão. Segundo
Jesus, no serviço e no perdão
recíprocos e na partilha, como se vê
nos diálogos que se dão na última subida a Jerusalém, quando só se trata do serviço (o verdadeiro poder exercido
mediante a entrega das própria capacidades) e da partilha, poder exercido mediante a posse comum das coisas (cf. Mc
8, 22 – 10, 52). Logo no início do Caminho, há como que um resumo de tudo:
“Quem quiser salvar (guardar para si) a própria vida, a perderá; mas quem
perder (entregar) sua vida, por causa de mim e do Evangelho, a salvará. Com
efeito, que aproveita a alguém ganhar o mundo inteiro e arruinar sua própria
vida?” (Mc 8, 35-36). Dito que revela fina percepção do estrato mais profundo
do psiquismo humano...
Se o “locus” da Revelação de
Deus é o poder (a encruzilhada entre entrega de si ou dominação), isto
significa que aí está também o “lugar” da comunhão. Na verdade, o poder real,
autêntico, é o que está carregado de “autoridade”. Como dizia Margareth
Tatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido: “O poder é como uma dama, se
precisa dizer que é, já não é”. Não tem necessidade de impor-se, de afirmar-se
de fora, pois poder equivale a potência de ser, isto é, capacidade e possibilidade
de ser. Já foi lembrada a família do vocabulário do poder: potência, potestade,
possível, possibilidade, posse... É ser “auctor”, capacidade de “fazer crescer”
(verbo “augere”, em latim), possibilidade de ser mais. É ser construtor(a) de
si mesmo(a) e edificador(a) de outras pessoas e do mundo em redor. É empoderar-se
e empoderar; mediante as relações, ser capaz de transbordar capacidade de ser
em torno de si, irradiar e promover poder: “Em verdade, em verdade, vos digo:
quem crê em Mim fará as obras que faço e fará até maiores do que estas, porque
vou para o Pai” ( Jo 14, 12).
Notemos que Jesus nunca diz:
“Meu poder te curou”, mas “tua fé te
salvou”. Assim, devolve à outra pessoa seu papel de sujeito, de “autor” da
própria transformação. Ter necessidade de impor, ordenar, mandar, coagir é
sempre sinal de fraqueza, imperfeição do poder, incapacidade de influenciar por
dinamismo de irradiação criativa. É sinal de relação humana inconclusa,
precária, frágil. É isto o que distingue o que é mero (e frágil) poder legal e
o que é de fato poder real, o que se chama de capacidade/possibilidade de
liderar, de atrair, de encantar, de chamar a seguir, como, por exemplo, se dá
com Jesus que é capaz de convencer, por Sua autoridade moral, esta, sim, o
verdadeiro poder: “Senhor, a quem iremos, só Tu tens palavras de vida eterna”
(Jo 5, 68; cf. Jo 1, 35-39).
Jesus é antropologicamente
radical quando ensina que quem é realmente primeiro não teme comportar-se como
último, não hesita em servir e partilhar, ou seja, oferecer a vida (o que se é
e o que se tem) em favor das demais pessoas (cf. Jo 10,10; Mc 8, 34-38; 9,
33-37; 10, 35-45); nisto é que se revela o autêntico poder, quando a pessoa
chega a tal posse de si mesma que se oferece totalmente sem medo de perder-se.
Na verdade, só se entrega quem se possui.
Note-se que não estamos no nível de “preceito moral”, mas no nível
antropológico, constitutivo do ser pessoa mediante a liberdade. “O sentido da
vida são as outras pessoas”, proclamava o poeta Ferreira Goulart.
Conclusão: A idolatria e o Deus vivo. O ser humano
é, por essência, material, concreto,
particular, “individual”. Essa condição se reflete na relação com realidades
transcendentes, pois a tendência é imaginá-las à semelhança de algo palpável.
Só podemos conceber realidades espirituais por abstração ou por analogia. O
comportamento mais comum, porém, é “representá-las” imaginativamente como
“algo” ou “alguém”, o que, evidentemente não é adequado. É nisso que está a
raiz das imagens de Deus que construímos. Sempre projetamos nelas nossas
experiências no mundo, necessariamente marcadas pela materialidade e a
contingência. Temos de levar em conta esta nossa condição, mas é preciso
esforçar-se por ir além dela.
Na verdade, pela “via
projetiva” é impossível alcançar Deus, pois não é “efeito” ou “produto”, antes,
“causa última” da realidade. Por isso, só se revela pela potência que difunde
em todas as coisas, uma vez que todas as “causas segundas” d’Ele derivam por
“participação” em Seu ser, como ensina Santo Tomás.
Esta é a razão mais profunda
pela qual as Escrituras proíbem construir “imagens”. Deus não se revela como
“algo” ou mesmo “alguém”. Nós o experimentamos como dimensão presente em nós e entre nós que nos arrasta para além de
nós, e é imprescindível para nosso processo de humanização, como vimos na
Primeira Carta de São João. Ou O assimilamos e nos tornamos semelhantes a Ele, ou nos fechamos num círculo
diabólico que nos leva a matar e morrer (cf. 1Jo 2, 12-17; 3, 11-15).
Como vimos, a partir da
altura de nossa condição de “pessoa”, imaginamos ou postulamos que Deus seja
tido como realidade “pessoal”. A Bíblia
aponta para Jesus e para os pobres, neles é que transparece Seu rosto, uma
maneira concreta de dizer que Deus Se revela sempre mediante a realidade de
Outro(a), mediação da transcendência, chamado a irmos além de nós, via
obrigatória para o reconhecimento de nós mesmos(as), pois só Se revela em nós e
entre nós. Assim, é mediante as relações entre nós que se nos revela Sua
presença: “Deus é amor e quem ama conhece (por experiência) Deus”. Dom Helder
Camara sempre dizia com plena convicção que nos pobres tocamos “o Cristo vivo”,
passamos além dos símbolos e alcançamos o conteúdo da fé. O mesmo que
percebemos hoje nos gestos e nas palavras desse outro grande homem que é o Papa
Francisco.
Esta não é simplesmente uma
questão “religiosa”, é, na verdade, a questão axial da vida humana, a questão
antropológica radical, a referência
absoluta. Só é possível tornar-se
humano(a) quando se está em Deus, independentemente
de crença religiosa. Não se trata de “saber”, trata-se de “ser”. O Evangelho o
declara quando diz que a “relação” é a medida do julgamento inapelável ( cf. Mt
25, 31-46). Justamente porque são as relações com o Universo, com as outras
pessoas e com o Futuro que constituem nossa “pessoalidade”, nossa identidade. O
Pobre é particularmente o Outro a ser “afirmado”. Daí seu privilégio enquanto
imagem de Deus, já que o Outro é a concreta e imediata irrupção da
Transcendência e, por isso, o apelo a cada pessoa a projetar-se para além de si
mesma. O Deus vivo e verdadeiro não se revela como um “determinado” Deus em oposição a “outros” deuses, que possa ser
configurado com traços bem determinados, como se fosse mais excelso entre todos
os outros “entes”, isto é, todos os outros seres. Ora, é Ele a causa última que
perpassa e ultrapassa a totalidade dos seres, para aquém do Princípio e para
além do Fim. A função clássica da chamada Teologia Negativa é justamente esta,
derrubar todas as imagens que construímos de Deus, não para construir, em seu
lugar, outra imagem que seria “verdadeira e autêntica”, não, trata-se de
destruir todas as imagens (doutrinas, rituais, instituições religiosas...),
pois todas elas estão sempre contaminadas pela projeção de nosso próprio rosto,
fruto de nosso “desejo”. Em tudo o que imaginamos e dizemos de Deus há sempre o
germe da idolatria, o vazio e a mentira dos ídolos, como já advertiam os
profetas. “Deus é sempre maior” e só transparece mais plenamente no amor
maior...
Dom Sebastião Armando Gameleira Soares
Bispo da Igreja Anglicana